A constituição do seu espírito condenava-o a todas as ânsias; a do seu destino a abandoná-las a todas. Nunca encontrei alma, de quem pasmasse tanto. Sem ser por um ascetismo qualquer, este homem abdicara de todos os fins, a que a sua natureza o havia destinado. Naturalmente constituído para a ambição, gozava lentamente o não ter ambições nenhumas.
APÊNDICE 2.
... Este livro suave. É quanto resta e restará de uma das almas mais subtis na inércia, mais debochadas no puro sonho que tem visto este mundo. Nunca — eu o creio — houve criatura por fora humana que mais complexamente vivesse a sua consciência de si própria. Dandy no espírito, passeou a arte de sonhar através do acaso de existir.
Este livro é a biografia de alguém que nunca teve vida’... De Vicente Guedes não se sabe nem quem era, nem o que fazia, nem este livro não é dele: é ele. Mas lembremo-nos sempre de que, por detrás de tudo quanto aqui está dito, coleia na sombra, misterioso
Para Vicente Guedes ter consciência de si foi uma arte e uma moral; sonhar foi uma religião.
Ele criou definitivamente a aristocracia interior, aquela atitude de alma que mais se parece com à própria atitude de corpo de um aristocrata completo.
APÊNDICE 3
As misérias de um homem que sente o tédio da vida do terraço da sua vila rica são uma coisa; são outra coisa as misérias de quem, como eu, tem que contemplar a paisagem do meu quarto num 4º. Andar da Baixa, e sem poder esquecer que é ajudante de guarda-livros.
"Tout notaire a rêvé des sultanes"...
Tenho um prazer íntimo, da ironia do ridículo imerecido, quando, sem que alguém estranhe, declaro, nos actos oficiais, em que é preciso dizer a profissão: empregado no comércio. Não sei como inserto o meu nome vem assim no Anuário Comercial.
Epígrafe ao Diário:
Guedes (Vicente), empregado no comércio, Rua dos Retroseiros, 17-4º.
Anuário Comercial de Portugal
II. Matéria fragmentária da "Marcha Fúnebre para o Rei Luís Segundo Baviera"
APÊNDICE 4.
E para ti, ó Morte, vá a nossa alma e a nossa crença, a nossa esperança e a nossa saudação!
Senhora das Últimas Coisas, Nome Carnal do Mistério e do Abismo – alenta e consola quem te busca, sem te ousar procurar!
Senhora da Consolação, Lago ao luar, entre rochedos, Longe da lama e da poluição da Vida!
Virgem-Mãe do Mundo absurdo, forma do Caos incompreendido, alastra e estende o teu reino sobre todas as coisas — sobre as flores que pressentem que murcham, sobre as feras que estremecem de velhas, sobre as almas que nasceram para te amar entre o erro e a ilusão da vida!
A vida, espiral do Nada, infinitamente ansiosa por o que não pode haver.
APÊNDICE 5.
Trazei vós o pálio de ouro e morte, cavaleiro da decifração inútil. A sangue e rosas lembrai o sonho inútil que se estiolou nos jarros, antes da mão branca que os soltasse. Pisai leve, como arauto das sedas, a sala queda, no antebrilho do tédio, na hora mortiça dos candelabros claros, no charão das pedrarias fechadas à chave e aborrecimento.
Quem vós éreis, senhor, ficou entre as sereias, no esquecimento lunar dos mares mortos. Ouviu as canções da doença das águas, que não chegam à lua senão por desejo, e desfolhou, uma a uma, as rosas no jardim do palácio do conseguimento interrompido. O som de violões de haver melhores coisas afastou a atenção dos seus ouvidos das palavras imperiais entre rumores.
A vossa mão deixou a mão de quem interrompeu porque foi preciso ir mais a perto da lonjura trazida por suspiros. O lago entre árvores era como um sonho de água no meio de arvoredos de ilhas, e o desejo? Era como uma hora de luar parado ao acontecimento nuvem, o céu incerto e a passagem de pajens
APÊNDICE 6.
... E baixada a ponte levadiça, para que entre, quando chegue para entrar.
APÊNDICE 7.
O homem magro sorriu desleixadamente. Olhou-me com uma desconfiança que não era malévola. Depois sorriu novamente, mas com tristeza. Baixou depois outra vez os olhos sobre o prato. Continuou jantando em silêncio e absorção.
APÊNDICE 8.
(Cópia de uma carta para Pretória)
5/6/1914