Milhares de mortos. Com as maiores, ele fazia diferente. Empalava saúvas com agulhas bem finas, fazia com que elas se degolassem com as poderosas presas em forma de tesoura. Com outros grupos de saúvas aconteciam desastres pavorosos onde muitas morriam afogadas em um balde com água, outras eram incineradas em um prédio de caixa de papelão. Quem conseguisse se aproximar o suficiente de Eustáquio nesses movimentos de transe, poderia ouvi-lo sussurrando baixinho os gritos dos suplicados. Dali ele saía horas depois com uma cara um tanto aliviada e reacendendo a ácido fórmico. Com o passar do tempo suas vítimas foram se tornando cada vez maiores, gatos e pássaros. Até que o vi ajudando o pai a preparar um peru para a ceia de natal. Eles o embebedaram bastante e depois o soltaram no quintal. Então Eustáquio correu atrás dele com um facão afiado na mão e degolou-o de um só golpe, em movimento. A cabeça cortada mergulhou na poeira e me concentrei um segundo nela, sentindo meus próprios olhos a desagradável sensação da terra atrapalhando o piscar. O peru bêbado e acéfalo rodopiava e seu pescoço desgovernado ejaculava um caldo grosso, de um vermelho brilhante. A família ria.
De minha mãe herdei a calma e o temperamento passivo e observador. Ela tinha um pouco da imagem de Nossa Senhora e naqueles tempos elas eram prá mim quase que a mesma coisa, o mesmo sentimento, a mesma pessoa. Isso compensava a figura de meu pai, de um temperamento agressivo e autoritário. Ele se sentia bastante inferiorizado por não Ter conseguido nenhum diploma escolar e evidenciava isso de forma bastante desagradável quando suas bebedeiras o deprimiam suficientemente. Por vezes enveredava numa enfiada de maldições contra tudo e contra todos. No entanto outras vezes eu até gostava de ouvi-lo elaborar mais seu Espanhol para falar dos grandes homens, das grandes idéias políticas e das peripécias de um homem chamado Jesus. Nesses momentos seus olhos brilhavam e ele esquecia completamente sua condição de trabalhador braçal. Ele tinha uma predileção especial pelos nomes ligados às artes médicas e sempre citava um certo Samuel Hahnemann, que teria nascido em Meissen, na Saxônia em 1755. Eu gostava de vê-lo pronunciar «Hahnemann» corrigindo a postura e carregando na primeira sílaba. Ele sempre começava «O grande Samuel Hahnemann.» e na seqüência invariável viriam Hipócrates e Paracelso, até que ele se cansasse e fosse dormir. Para mim havia um tanto de magia naquilo tudo e ficava imaginando como teria sido a vida desses homens. Hoje já sei um pouco mais de tudo deles e, por influência dos discursos etílicos do meu pai ou não, tentei seguir o mesmo caminho e acabei me tornando um farmacêutico apaixonado pela Filosofia, pela Arte e pela História do Conhecimento.
O fascínio que a natureza sempre me provocou hoje tem conteúdos bem mais elaborados intelectualmente. Mas perderam muito da espontaneidade original. Acho o resultado final compensador, mas sinto que jamais o cérebro superará o coração. Por mais que se conheça com técnicas sofisticadas a intimidade das plantas e o mecanismo de sua fisiologia, esse conhecimento jamais provocará em nós uma sensação mais intensa do que o cheiro fresco de uma moita de capim depois de uma tempestade. E esta experiência é tão subjetiva quanto a intuição. Na verdade a intuição me parece com o faro, em sua essência.
Está acesa, mas parece não estar. A gente nunca percebe que está respirando. Só quando aparece um cheiro característico, então o respirar se torna consciente. Se for cheiro de fumaça, por exemplo, dependendo da situação, pode significar fogo dentro de casa e todo nosso ser entra em estado de alerta. Com a intuição parece acontecer a mesma coisa. Uns a têm mais apurada, outros menos. No entanto, um farmacêutico jamais pode negligencia-la, sob pena de comprometer sua profissão. Pois a base de seu trabalho repousa no relacionamento humano. Tanto o relacionamento terapeuta/paciente quanto o relacionamento paciente/ambiente que o rodeia. E para o desenvolvimento da intuição é necessário tornar-se um poliglota e entender cada vez mais de todas as linguagens. Desde a de um vaso de Avenca que pede água a uma cadela com crias que diz «não se aproxime» com um simples olhar. Da corcunda contraída que caracteriza o asmático à cor amarelada do rosto nos que tem problemas intestinais. Infusões de castanheiro dos Alpes e Apeninos para o p0rimeiro e chá de sementes de abóbora para o segundo. Os feijões se parecem com os rins na forma e realmente sua relação é íntima. As folhas das plantas tem ramificações como os pulmões e realmente sua relação é íntima. Isto pode ser aprendido ou percebido intuitivamente. Mas a intuição é mais importante. O que não desmerece a escolástica. Pelo contrário. Ambos são profundamente necessários.
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